
Ressurgência Étnica: Os Indígenas da Batalha
ARTIGO
O processo de ressurgência étnica em Vitória da Conquista, onde descendentes lutam por reconhecimento de sua identidade, contrariando o mito do desaparecimento
Um tema recorrente na historiografia sobre os povos indígenas é a tese do “desaparecimento” do indígena — conceito vago, historicamente utilizado por setores dominantes, especialmente a partir do século XIX. Nessa perspectiva, o “problema do índio” estaria “resolvido” no Brasil, com o fim dos aldeamentos e dos Diretórios de Índios, a espoliação e completa expropriação de suas terras e a absorção de sua força de trabalho por particulares e pelo Estado.
Essa noção de desaparecimento ganha ainda mais força em regiões onde o passado indígena foi relativamente bem documentado e, paradoxalmente, utilizado para justificar a ideia de que seus habitantes originários teriam sido totalmente extintos. Trata-se de um processo que articula elementos simbólicos e políticos e que impacta diversas cidades brasileiras. Esse apagamento histórico também se associa a mitos fundacionais e a acontecimentos de grande significação cultural, funcionando como mecanismo de negação da presença indígena contínua e das lutas por território, identidade e reconhecimento.
Contudo, é importante destacar que a destruição física da maioria das comunidades indígenas e a apropriação de suas terras por colonizadores e elites — tanto no período colonial quanto após a independência — não são mitos. Novas pesquisas demonstram que, apesar desse passado de violência, há um processo contínuo de reorganização e reemergência de grupos indígenas, com comunidades que passaram longo tempo invisibilizadas agora lutando por reconhecimento oficial de suas identidades e territórios.
No antigo Sertão da Ressaca, restou muito pouco da tradição e dos costumes indígenas. No entanto, remanescentes buscaram abrigo em localidades como Boqueirão dos Pretos e Ribeirão do Paneleiro, na área conhecida como Batalha, onde hoje ocorre uma reivindicação identitária por parte de moradores que se reconhecem como descendentes dos Mongoió. Essa identidade esteve, por muito tempo, “adormecida” — muitas vezes ocultada como estratégia de sobrevivência diante da violência e do preconceito.
A obra Índios Paneleiros do Planalto da Conquista: do massacre e o (quase) extermínio aos dias atuais, de Renata Ferreira de Oliveira (2020), resgata a história do projeto colonizador do Sertão da Ressaca — região situada entre os rios Pardo e de Contas — a partir do século XVIII, quando a Coroa Portuguesa incentivou a expansão das fronteiras em direção ao interior. Os objetivos eram claros: encontrar metais preciosos, implantar fazendas de gado, exterminar os indígenas que resistissem ao povoamento, aldear os que aceitassem a dominação e reprimir os quilombos.
Essas ações desestruturaram profundamente as comunidades indígenas locais. Houve aprisionamento de pessoas para trabalho compulsório, bem como o massacre de aldeias que resistiram à dominação luso-católica. Na obra, a autora enfatiza as estratégias de resistência dos povos Pataxó, Mongoió e Ymboré, ao mesmo tempo em que demonstra a permanência de seus descendentes na região da Batalha, especialmente na comunidade do Ribeirão dos Paneleiros.
Oliveira propõe um contraponto às narrativas dominantes, que exaltaram, por muito tempo, o colonizador como símbolo civilizatório e, posteriormente, passaram a vitimizar os indígenas, apresentando-os como figuras em extinção. A memória indígena foi, assim, empurrada à clandestinidade simbólica. O trabalho da autora devolve visibilidade histórica e política a essas trajetórias, reforçando a importância da escuta, do reconhecimento e da valorização das identidades indígenas ainda presentes e atuantes na região.
A partir da história oral de moradores da Batalha — local onde teria ocorrido o último grande conflito entre colonizadores e indígenas —, cruzada com fontes documentais judiciais do século XIX, a autora traça os caminhos da ocupação territorial e da presença indígena nos arredores da antiga Vila Imperial de Vitória da Conquista. Os relatos locais reconstituem, com forte carga simbólica e afetiva, cenas de extrema crueldade: sequestros, estupros e assassinatos de kurukas (crianças, no vocabulário gren/botocudo).
Uma narrativa marcante envolve o coronel Bitonho, caçador de índios, que teria sequestrado uma kuruka com intenções de violentá-la. Diante da resistência da criança, o coronel a assassinou com um facão. A lenda diz que, tempos depois, ao tentar matar um tatu durante uma caçada, feriu-se com o mesmo facão e morreu em decorrência do ferimento. O encantamento da kuruka no tatu teria sido a força da vingança, conferindo à narrativa um sentido de justiça mítica e resistência simbólica. Como afirma Oliveira: “o que marca, nas narrativas sobre a guerra, é um processo de resistência evidenciado dentro e fora do âmbito da violência”.
As chamadas “emergências étnicas”, “ressurgências” ou “viagens da volta” são designações para o fenômeno que a antropologia conceitua como etnogênese — ou seja, a constituição de novas identidades étnicas a partir de traços culturais, simbólicos e históricos herdados de povos originários, ainda que reorganizados diante da experiência de colonização, apagamento e resistência.
A comunidade de Ribeirão dos Paneleiros, situada no povoado da Batalha, é um exemplo emblemático desse processo. Os moradores reivindicam sua identidade indígena e buscam o reconhecimento oficial de seu pertencimento étnico, além do direito à terra. Tal experiência está inserida em um movimento nacional mais amplo, em que diversos grupos indígenas — muitas vezes considerados extintos — reconstroem suas trajetórias históricas, suas cosmologias e seus modos de vida, reafirmando seu pertencimento e seu direito de existir em sua diferença.
Referências:
AGUIAR. Edinalva Padre. (org) Revista Memória Conquistense edição nº 5: “Ymboré, Pataxó, Kamakã: A presença indígena no Planalto da Conquista”, (2000) produzida pelo Museu Regional, a partir dos escritos de Edinalva Padre Aguiar, Antonieta Miguel e Ruy Hermann Medeiros.
ISA-INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL -
https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal
NEWIED. Maximiliano Wied “Viagem ao Brasil” do Príncipe Maximiliano Wied Newied (1815-1817)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de (2020), “Índios Paneleiros do Planalto da Conquista: do massacre e o (quase) extermínio aos dias atuais” (2020)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de. Batalha: Memória e Identidade Indígena no Planalto da Conquista. Monografia de finalização de curso, UESB, Vitória da Conquista, 2009.
SPIX. Von MARTIUS. Von “Através da Bahia”: Terceira edição, 1938 Companhia Editora Nacional São Paulo - Rio - Recife - Porto Alegre
SOUSA. Maria Aparecida Silva de. “A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia”, (2001)
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