
Kamakã-Mongoió
HISTÓRIA
Povo Macro-Jê semi-nômade do sudoeste baiano, que resistiu à colonização e tem memórias preservadas.
A denominação Mongoió ou mungoyóz de acordo com a corografia brasílica foi dada pelos portugueses e se refere ao grupo pertencente ao Tronco Macro-Jê e à Família Kamakã. Os Kamakã -Mongoió eram povos indígenas que habitavam a região do sudoeste da Bahia, incluindo áreas como o planalto da Conquista, antigo sertão da ressaca, onde hoje está localizada Vitória da Conquista e áreas entre os rios Colônia, Pardo, Jequitinhonha e das Contas, pertenciam ao tronco linguístico Macro-Jê, que era predominante em grande parte do interior do Nordeste e Centro-Oeste do Brasil.
De forma mais detalhada de acordo com o príncipe Wied-Newied, o território dos Kamakã se estendia do rio Cachoeira, ao sul, onde principiava às margens do córrego da Piabinha até o Rio Pardo, enquanto que ao norte eles se estabeleciam até além do Rio das Contas, onde já teriam renunciado “à vida selvagem”. Entretanto, seriam, conforme a sua classificação, mais civilizados que os Pataxó e Botocudos, seus vizinhos, que não viviam mais exclusivamente da caça e já cultivavam plantas para sua subsistência
Ainda de acordo com Maximilian de Wied na publicação do site https://pib.socioambiental.org/ Tanto no Catolé como no Verruga (rios da região de Vitória da |Conquista) , ambos afluentes do Pardo, havia Kamakã-Mongoiós que trabalhavam por dia. Eles viviam a maior parte do tempo nus, pintados com urucum e jenipapo, colares de sementes grandes em volta dos pescoços, chefiados pelo mulato português João Gonçalves Costa, que aí residia e tinha sob seus cuidados diferentes aldeias, ou “rancharias. Costa havia adquirido notoriedade como aventureiro e conquistador que aí teria aportado, acompanhado de um bando de homens armados, declarado guerra aos primitivos habitantes do território, os Kamakã, se apossado do seu território e fundado o arraial de Conquista. Havia também famílias Kamakã em Barra da Vereda, no Riacho da Ressaca, campos gerais que se estendiam até o rio São Francisco e confinavam com o sertão da Bahia, onde a criação de gado constituía a principal atividade. Eles trabalhavam aí também mediante salário, empregados, sobretudo, na derrubada das matas ou em caçar na floresta. A maioria havia sido batizada e alguns traziam uma cruz vermelha pintada com urucu na testa. O comércio entre Minas e Bahia se fazia nessa área por diferentes caminhos.
A sua forma de falar e se comunicar levou Spix e Martius a seguinte observação:
“Os sons nasaes e guturaes são muito communs na linguagem dos Camacans. .A .. 's vezes, as palavras, compridas e ligadas entre si, adquirem imprecisão esquisita na accentuação, surgindo o som, por assim dizer, do interior do peito, ficando, porém, abafado na bocca. Dizem que a língua, bem que pobre e acanhada, é muito enérgica. Com as poucas palavras que possuem, os Camacans foram parcimoniosos, quando depois, ao penetrarmos em suas cabanas, desejámos informações sobre os diversos utensílios do seu pobre lar.”
Eram um dos principais grupos da região, conhecidos por sua resistência à colonização. Seu território era marcado por uma vegetação de transição entre a caatinga e a mata atlântica, o que influenciava seu modo de vida e práticas de subsistência. Viviam em aldeias organizadas, com uma estrutura social baseada em laços familiares e comunitários. tinham uma organização social baseada em clãs ou grupos familiares seminômades, deslocando-se conforme a disponibilidade de recursos naturais. Praticavam a caça, a pesca e a coleta, além de um incipiente cultivo de plantas, como o milho e a mandioca. Utilizavam técnicas de manejo da terra adaptadas ao ambiente do sertão e das serras demonstrando um profundo conhecimento do ambiente em que viviam.
Pouco se sabe sobre suas práticas religiosas, mas, como outros povos Macro-Jê, provavelmente tinham rituais ligados à natureza e aos espíritos. Usavam adornos corporais como colares e braceletes e pinturas ritualísticas, comuns entre os povos indígenas da região.
Também Spix e Martius observaram que:
“Esses índios indistinctamente enterram os cadáveres das crianças em qualquer Jogar, porém, os dos adultos são sepultados na mata e, ás vezes. de cócoras. segundo nos informaram. A sepultura é coberta com muitas folhas de palmeira e, de vez em quando, os índios collocam carne fresca em cima. Quando a carne é comida por algum animal ou quando desapparece por outros motivos, acreditam que agradou ao morto e evitam, por muito tempo, o uso daquella qualidade de caça . Este habito, encontrado bastante diffundido na maior parte das tri!,us selvagens, pode confirmar” (SPIX . MARTIUS 1938 pg. 201).
Tinham uma série de ritos de passagem, nos quais podemos incluir a furação das orelhas e a nominação das crianças. O maior rito era a corrida de toras; segundo essa era a condição primordial para que o homem Kamakã pudesse se casar. Eles conferiam grande poder às forças da natureza, especialmente ao sol, e tinham uma série de instrumentos de cura, como a fumaça de tabaco soprados nos doentes, longos cânticos, infusões e emplastros feitos de ervas.
“Os índios Camacans, do sexo masculino, attingem a puberdade aos quinze ou dezeseis annos, porém, só mais tarde, é que costumam tomar mulher, a quem ,igiam com muito ciume e castigam cruelmente, quando ha qncbra da fidelidade conjugal. Diversos pretendentes a uma noiva decidem a contenda por meio da seguinte prova: - vencerá quem alcançar maior distancia correndo e carregando um tóro de madeira, - pesando oito ou nove arrobas.” (SPIX.MARTIUS. 1938 pg. 200)
“Os Camacans, especialmente as mulheres, preparam a côr vermelha com as sementes do urucú ( Bixa Orellana. L.), triturando-as na agua fria até que se precipite ~ tegumento colorido. Reduzem esta substancia, o orellan_ a pedaços quadrados, qne deixam seccar ao sol e utilizam-na como tinta cosmetica, depois de moe-la de mistura com oleo de rícino ou com uma gordura animal.” (SPIX.MARTIUS 1938 p. 203)
Para os Kamakãs o Sol é um gênio mal que se nutre dos homens: foi ele que introduziu a morte no mundo. Ao descer à terra, a cada dia, ele se sacia, no decorrer da noite, daqueles que foram enterrados durante o dia. Por isso, quando eram feitas grandes plantações, os Kamakã só queimavam um pequeno aceiro na floresta, a cada vez. A fumaça incomodava ao Sol e ele se tornava vermelho de cólera quando se fazia fogo. Assim, queimando-se pouco a pouco, faz-se menos fumaça e se o irrita menos.
A Lua, ao contrário, é considerada uma divindade benfazeja. É ela que indica aos Kamakã o melhor período para plantar, na lua nova, quando ela surge, a oeste, assim que sol se põe. É a Lua também que lhes informa sobre o início dos tempos chuvosos e tempestades e os guia no decorrer da celebração das festas: a cada cinco anos, eles permanecem ao longo de um ano em festas, quando os casamentos são celebrados. Fonte https://pib.socioambiental.org/pt/.
Não obstante todas as dificuldades interpostas à comunicação entre os dois Nimuendaju recolheu um conjunto formado por 24 relatos junto aos Kamakãns mostrando a riqueza dos seus saberes. (Nimuendaju 1938). Destes, estão publicados: os mitos do Sol e Lua; os preás e os caratingas; a enchente; o enfeite do pica-pau; o roubo das flechas; a lua na caverna; eclipses e incêndio mundial; a moça-estrela; o trovão; kecaxkwenyói; a origem das mulheres; o homem que queria morrer; Wadyé; a mulher que ressuscitou como onça; a festa das almas de defuntos; o sagüi; o pica-pau e as kanondarátsi; o herói Korõ; o jaguar na festa dos índios; a mulher e o casal de jaguares; a onça teimosa; o homem entre as antas; a batalha das aves; os irmãos encantados; o viajante (Viveiros de Castro 1984:98- 106).
Os Kamakã foram um dos povos que mais resistiram à colonização portuguesa, participando de conflitos e guerras para defender seus territórios. Baseavam sua subsistência na caça, pesca, coleta e em práticas agrícolas rudimentares. Cultivavam plantas como milho e mandioca, adaptadas ao clima e ao solo da região.
Os Kamakã-Mongoió foram duramente impactados pela colonização portuguesa, sofrendo com a perda de terras, escravização e doenças trazidas pelos europeus. Compartilhavam territórios no sudoeste da Bahia e resistiram bravamente à colonização portuguesa.
Para a sua defesa os Kãmacã-Mongoió contavam com o uso de armamentos de fabricação artesanal:
“As armas dos Camacans são arcos e flechas, que sómente na guerra costumam envenenar com o extracto) de uma trepadeira. Os arcos medem sete a oito pés de comprimento, tendo um sulco longitudinal na parte anterior. São feitos da madeira escura, de uma grande leguminosa - baraúna. As flechas, de quatro pés de comprimento, têm, como é commum nas tribus indigenas, pontas simples ou em forma de arpão, conforme se destinam á caça grossa, á pequena, ou á guerra. Para as caçadas de pequenos passaros servem-se tambem de uma flecha com cinco ou seis pontas Uma vara espontada e bastante polida, de madeira avermelhada, é, ás vezes, entregue ao chefe na guerra: como bastão ele commando.” (SPIX.MARTIUS 1938 p. 198)
Apesar de tenaz resistência a colonização portuguesa, os Kamakã-Mongoió foram, entre os três principais grupos que habitaram o planalto da Conquista, aquele que mais se aproximou dos europeus, segundo o relato do viajante também no relato a informação dos seus principais inimigos entre os nativos :
“Desde o anuo ele 1806, quando o Coronel João Gonçalves da Costa conseguiu pacifica-los, são índios considerados como amigos dos portuguêses. O ódio mortal que reina entre elles e as tribus anthropophagas dessas regiões, os Patachós (Cutachos) e os Botucudos, aproxima-os dos portuguêses, não obstante serem, como todos os índios, desconfiados e tímidos.” (SPIX.MARTIUS 1938 pg. 199)
A presença dos Kamakã - Mongoió na região de Vitória da Conquista é lembrada principalmente por meio de estudos históricos e antropológicos. A resistência desses povos à colonização e sua relação com o território são parte importante da história da formação cultural do sertão baiano. Infelizmente, muitos aspectos de suas culturas foram perdidos devido ao processo de colonização e à dispersão desses grupos ao longo dos séculos. Os Kamakã -Mongoió foram um dos povos que mais resistiram à colonização portuguesa. Participaram de diversos conflitos e guerras para defender seus territórios e seu modo de vida. A resistência dos Kamakã-Mongoió foi marcante na região do sudoeste da Bahia, mas, com o avanço da colonização, muitos foram deslocados, escravizados ou exterminados.
Com a chegada dos colonizadores portugueses no século XVIII, os Kamakã-Mongoió sofreram grandes perdas. Suas terras foram tomadas, e muitos foram mortos em conflitos ou morreram devido a doenças trazidas pelos europeus. A resistência dos Kamakã foi significativa, mas, com o tempo, o grupo foi disperso e sua cultura, em grande parte, perdida.
A série Memória Conquistense do Museu Regional da UESB na sua quinta edição, dedicada aos povos que habitavam o antigo sertão da Ressaca elencou aspectos da cultura daqueles povos em texto da professora e pesquisadora Ednalva Padre Aguiar.
Sobre os Kamacã-Mongoió:
Diferentemente dos seus vizinhos Pataxós e Ymborés , praticavam de forma mais sistemática a agricultura combinando com a caça, pesca e coleta. Caçavam animais como veados, tatus e pássaros, além de pescarem em rios e córregos da região. Recolhiam frutos nativos, como coco-de-catolé e pequi, além de raízes e mel silvestre. Praticavam o cultivo de mandioca, milho e outras plantas para alimentação. Produziam utensílios, cestarias e artefatos de cerâmica, podendo trocar com outros povos ou grupos vizinhos.
Meios de Sobrevivência
Divisão do Trabalho
Como na ampla maioria das comunidades indígenas existia uma divisão de trabalho baseada no gênero em que Homens eram responsáveis pela caça, utilizando arco e flecha, armadilhas e outras técnicas para capturar animais; Faziam a pesca, seja com lanças, redes ou anzóis rudimentares; Realizavam a derrubada da mata para a abertura de roças e ajudavam no plantio e na colheita; Construíam as habitações e fabricavam armas e utensílios; Defendiam a aldeia em caso de conflitos. Mulheres: Cuidavam da agricultura, plantando e colhendo mandioca, milho e outras culturas; Responsabilizavam-se pela coleta de frutos, raízes e mel; Preparavam os alimentos e produziam utensílios de cerâmica e cestaria; Cuidavam das crianças e da organização da aldeia; Crianças e Idosos: As crianças aprendiam observando os adultos e participavam de pequenas tarefas, como coletar frutos e ajudar na aldeia; Os idosos desempenhavam papéis importantes na transmissão de conhecimentos, rituais e na tomada de decisões. Importante salientar que essa divisão não era rígida, e existia uma colaboração coletiva para garantir a sobrevivência da comunidade.
Moradia, Vestuário, Utensílios
Segundo o relato de viajantes ,devido a característica de pouca movimentação e elevado sedentarismo os Kamakãs - Mongoíos viviam em grandes casas ocupadas por cerca de 20 famílias, posição conflitante com outros relatos que informam terem encontrado grupos desse povo vivendo em cabanas menores feitas de madeira entrelaçada e barro. Geralmente dormiam em jiraus recobertos com pau de estopa, peles de animais e folhas.
Andavam geralmente nus ou com poucas vestimentas, devido ao clima quente; Em algumas ocasiões, usavam tangas de algodão, palha ou casca de árvore; Podiam decorar o corpo com penas, colares e enfeites feitos de sementes, ossos e conchas; pintura corporal era importante para rituais, guerras e festividades; Usavam pigmentos naturais retirados de plantas, como o urucum (vermelho), jenipapo (preto) e tabatinga (branco). As mulheres preferiam a cor vermelha e os detalhes geométricos, circulares em volta dos olhos e seios. Com uma maior aproximação com os missionários portugueses com o cristianismo alguns indígenas passaram a pintar a imagem da cruz na testa. As tintas eram produzidas a partir de resinas de arvores, óleos de frutas e gorduras de animais, Os tons se fundiam com a utilização do jenipapo e do urucum que, misturados e secado ao sol, chegavam a cor desejada. Pintavam todo o corpo a exceção dos pés e cabeça.
Voltando para os registros do príncipe Maximiliano, em sua Viagem ao Brasil ao se deparar com os Kamakã-Mongoyós entre 1816-1817, mostra sua situação naquele momento: Os pobres índios são tiranizados, tratados como escravos, mandados a trabalhar nas estradas e a derrubar das matas, mandados a levar mensagens a grande distância, cita que o príncipe Maximiliano “considerava mongoió nome atribuído pelos portugueses ao aborígene que se autodenominava camacã recrutados para servir contra os ‘tapuias’ inimigos, como, por outro lado, isso fazem sem ou quase sem receber pagamento algum, não é de estranhar que, sempre propensos à liberdade, não tenham nenhuma disposição para com seus opressores. (WIED-NEWIED, 411, apud, SOUSA, 2001, p. 86).
Tal aliança levou a dura exploração dos Kamakã-Mongoyó, que, no entanto, foram essenciais para a manutenção da dominação territorial, seja no combate aos demais grupos inimigos, seja na própria manutenção da produção agrícola, pois, sendo este grupo “de tão bom caráter que vive em sociedade com plantações de bananas, batatas, inhames, e toda sorte de fava e feijão, o que constitui uma nação dócil e fácil de reduzir”. (SOUSA, 2001, p. 86)25. Destaca-se aqui a importância da agricultura indígena e seus conhecimentos ancestrais no cultivo dessa diversidade de plantas, como a mandioca - também chamada de inhame pelos portugueses - que, sendo uma planta venenosa, foi domesticada ao longo de milhares de anos para se tornar a base da alimentação indígena, presente até hoje na culinária, de várias formas.
Aspectos culturais dos Kamakã-Mongoyó do Planalto da Conquista Sobre os aspectos culturais dos Kamakã-Mongoyó, das moradias, utensílios, indumentária e artefatos, Edinalva Padre Aguiar destaca: Quanto às espécies de moradia, alguns viajantes afirmam que eles viviam em grandes casas, que eram ocupadas por cerca de 20 famílias. Outros atestam terem encontrado cabanas feitas de madeira entrelaçada e barro, cobertas com cascas de árvores, o que demonstra um maior contato com as formas arquitetônicas dos colonizadores. Para dormir, utilizavam jiraus recobertos com pau de estopa, peles de animais ou folhas. (AGUIAR, 2000, p. 37).
Os Kamkã-Mongoyós cultivavam: “batata-doce, feijão, caju, banana, milho, algodão, melancia, abacaxi etc.” O plantio, segundo Aguiar “era realizado no período das chuvas, já que este era apropriado para a semeadura, enquanto o tempo seco favorecia as coletas.” Ao tratar da divisão do trabalho a autora diz que não obteve informações mais precisas, porém, “podemos imaginar que deveria basear-se no sexo, tal como os Ymborés.” (AGUIAR, p. 37).
Observa-se aqui que nas culturas indígenas brasileiras, segundo Darcy Ribeiro na obra O Povo Brasileiro: os nativos Tupis quando “davam seus primeiros passos para a revolução agrícola”, “por um caminho próprio, juntamente com outros povos da floresta tropical que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para a de mantimento de seus roçados.” Neste processo, desenvolveram a cultura da mandioca, uma planta venenosa cujos tubérculos eram usados para a produção da farinha que passava por um processo de lavagem, extraindo assim o caldo venenoso de ácido cianídrico que pode levar desde a embriague, à morte, de homens e de outros animais, a depender do consumo. Neste caso, os indígenas souberam selecionar as espécies mais adequadas ao plantio tornando-as consumíveis e criando assim a base alimentar desse “povo que come farinha de pau” (1995, p. 28).
Sobre os saberes e técnicas indígenas, segundo Aguiar (2000), os Kamakã também costumavam pintar-se com as cores preta e vermelha. “As mulheres preferiam a cor vermelha e os desenhos geométricos, especialmente, os circulares em torno dos olhos e dos seios. Já os homens tinham predileção por linhas horizontais e verticais e pela cor negra.”
Observa-se que esses costumes foram se modificando devido ao contato com os missionários, “alguns passaram a pintar a imagem da cruz na testa.” Nota-se aqui uma forma de adaptação dos kamakãs aos costumes coloniais, que, no entanto, mantinham seus saberes indígenas, como faziam para obter as tintas, “eles utilizavam resinas de árvores, óleos de frutas e gorduras de animais. Os tons eram conseguidos com o jenipapo e o urucum, machucados com água fria.” Assim, eles mantiveram seus saberes e técnicas até hoje reproduzidas, como mostra a autora: “Essa mistura era guardada por algum tempo e depois exposta ao sol e cortada em quadrados. Quando a água secava, a tinta era misturada a óleo de rícino ou gordura vegetal. Pintavam todo o corpo, excetuando-se apenas os pés e a cabeça.
Além de suas tradições próprias, os Kamakã-Mongoyó também mantinham outras em comum com os demais grupos da região. Segundo Aguiar Assim como os Ymborés, os Mongoiós depilavam inteiramente o corpo e o rosto. O chefe usava o cabelo sob a forma de tonsura (corte circular, rente na parte alta e posterior da cabeça), enquanto os demais cortavam o cabelo à altura do pescoço, utilizando para isso um pedaço de taquara. Costumavam usar os cabelos também compridos e soltos. Quanto à vestimenta, os homens usavam um estojo peniano, chamado tacanhoba, ou, como eles mesmos denominavam, hiranaika, feito de folhas trançadas; as mulheres usavam saias trançadas de fios de algodão, com franjas na frente e atrás, coloridas de preto e vermelho. Após o contato com os colonizadores, estas saias passaram a ser utilizadas por cima das de chita.
Dessa discrição de suas formas de se enfeitar, apesar de comum aos demais grupos, o próprio nome kamakã86, cabeça rodilhada, remete a essas características culturais. Destaca-se também seus padrões de beleza por meio dos adornos que distinguiam homens e mulheres, segundo Aguiar Os colares eram primazia dos homens, que os confeccionavam, com dentes de macacos, unhas de tapir (anta) ou sementes grandes e redondas. Havia poucos enfeites com plumas e esses normalmente eram utilizados pelos chefes em cerimônias especiais, além dos cocares (charó). Costumavam também usar esses enfeites nas orelhas. Assim como os Ymborés, tinham como padrão de beleza as pernas finas e torneadas e, para que as mulheres tivessem pernas bonitas, costumavam amarrar cordões de algodão desde abaixo do joelho até o tornozelo. (AGUIAR, 2000, p.38). Para carregar seus utensílios, bem como frutas, raízes e caças, os Mongoiós utilizavam sacos trançados e tingidos com cores vivas, especialmente, o preto e o vermelho. Ver-se que a base de suas indumentárias estavam na própria disposição dos elementos naturais, que utilizavam de uma forma ecológica: “Para o trançado, aproveitavam as fibras de palmeira. Com argila cinzenta faziam a cerâmica, e com ela, vasos esféricos com forma simples e não muito bem acabados.” (AGUIAR, 2000, p. 38). Ao tratar das suas armas e suas características, Aguiar as distingue pelo nome: “o arco (cuang) e a flecha (hoay), menores que a dos Pataxós, porém, ainda assim, consideradas de bom tamanho. As pontas das flechas se assemelhavam às três anteriores ou seja, côncava, para provocar a hemorragia; dentada, para dilacerar; ou em forma de roseta, que causava traumatismo pelo choque.” Observa-se aqui a diversidade de técnicas da cultura kamakã, que, apesar de sua destruição, ainda pode-se dispor desses achados arqueológicos disponíveis no acervo do Museu Regional de Vitória da Conquista.
Destaca-se também a prática de comércio entre os povos indígenas do Planalto da Conquista. Segundo Aguiar, à “medida que o processo de colonização foi aumentando, os Mongoiós vendiam seus produtos às tribos e as aldeias vizinhas. Além dos artigos manufaturados, trocavam mel e ceras perfumadas por roupas, armas e outros objetos de pouco valor.” (p.39). Notam-se aqui algumas divisões sociais de tarefas, como o preparo das bebidas pelas mulheres, e as atividades exercidas pelos homens. “Entre os Mongoiós, as atividades de caça e pesca, assim como a distribuição de seu resultado, eram realizadas coletivamente. O mesmo não ocorria com a agricultura, da qual, com exceção da banana, o produto pertencia ao seu proprietário”. (AGUIAR, 2000, p. 39). Vê-se aqui a organização social, onde a vida social está diretamente ligada à coletividade, ou seja, não há distinção de propriedade privada, além daquilo que se produz individualmente, o contrário do sistema capitalista moderno, não havendo por tanto, divisão de classes pela propriedade. Texto 3: Relações sociais, festividades e rituais dos Kamakã-Mongoyó Ao tratar das relações sociais, Aguiar ainda mostra como eram os rituais dos kamakã, desde seu nascimento, suas festividades, como os rituais de passagem, os casamentos até a morte, mostrando com riqueza de detalhes a vida cultural desse povo: Os partos eram realizados nas matas. Quando se tratava do primeiro parto, a parturiente era auxiliada por uma pessoa mais velha, que a colocava num buraco, Terminado o parto, mãe e filho banhavam-se no rio mais próximo, voltavam para a aldeia, e a mãe retomava normalmente suas atividades. Costumavam ter muitos filhos, e um dos fatores que contribuía para o alto índice de natalidade era a pouca idade das gestantes, pois costumavam parir desde os 12 anos. (AGUIAR, 2000, p.40). Destaca-se aqui a relação do cuidado dos pais e seus rituais, desde o trato do recémnascido, a dieta alimentar, segundo Aguiar: Os nascimentos estavam ligados a ritos que envolviam o pai, Durante quinze dias, o pai descansava em uma rede por ele escolhida e era obrigado a cumprir uma dieta alimentar que excluía carne de anta, macaco e queixada (porco do mato); comia essencialmente passarinhos. O milho e a banana criam absolutamente proibidos. (AGUIAR, 2000, p.40). 1
Além desses cuidados iniciais, observa-se a criação e liberdade que as crianças kamakãs eram educadas: “Até os três ou quatro anos, as crianças recebiam atenção especial; após essa idade, ganhavam relativa autonomia e desde cedo plantavam, colhiam e até cozinhavam.”(p. 40). Ainda, em se tratando das relações familiares e os rituais de casamento: Para casar-se, o jovem precisava pedir permissão ao chefe da aldeia e, se a noiva pertencesse a outra aldeia, este deveria se encarregar das negociações para obter a mão da noiva. Confirmado o casamento, havia a comemoração, que era realizada com a presença de vários membros da comunidade. Nessa ocasião, a comida era farta, principalmente milho, batata-doce e mamão e, enquanto houvesse alimento, a festa não acabava, continuavam a exibirem seus mais belos cocares. (AGUIAR, 2000, p.40). Observa-se aqui a cerimônia e seus rituais, desde as “danças e dádivas à noiva”, onde os “homens aproveitavam para exibir seus mais belos cocares”. Também, se observa as relações de unificação pelos casamentos realizados entre aldeias implicava uma troca, ou seja, “a tribo que recebesse a mulher doava outra àquela que a tivesse perdido.” Além disso, a autora mostra que, diferente da visão conservadora do catolicismo colonial, entre os kamakã as separações eram comuns e, quando aconteciam, “o pai tinha a responsabilidade de manter os filhos, mesmo que sua ex-mulher se casasse com outro. Assim como as separações, os retornos também eram bastante comuns.” (p.40-41). Texto 4: Rituais, espiritualidade e mitologia dos Kamakã-Mongoyó Sobre os rituais funerários, Aguiar apresenta a diferenciação que havia em relação à função social dos indivíduos: Os chefes de família eram enterrados com os corpos pintados, de cócoras, em buracos feitos nas matas. Em seus túmulos, plantavam-se algodoeiras e bananeiras. Junto ao corpo, colocavam-se enfeites de penas, armas, bebidas e utensílios de uso pessoal. Assim como os Ymborés, os Mongoiós costumavam acender fogueiras nos túmulos e as deixavam até que o fogo se extinguisse. Cobriam as sepulturas com folhas de palmeira. Eram ofertadas carnes e, a partir daí, esse produto e as bananas ai nascidas, ficavam entocodas pelo período de uma lua, tempo estabelecido para o luto, depois do qual a viúva podia casar-se novamente. (AGUIAR, 2000, p.41).
Assim, revelam-se também as suas crenças e aspectos religiosos, por exemplo, a respeito da visão espiritual, onde “as ofertas de alimento desaparecessem, significava que o morto as havia aceitado, que havia partido em paz e que não traria mais problemas de saúde para os membros da aldeia (ekor).” Por outro lado, “se esses rituais não fossem cumpridos, os mortos voltariam, tomando a forma de onça, e os atacaríam.”. Neste sentido, observa-se mais uma ez a relação espiritual com a natureza, onde a figura da onça, o maior felino das Américas, aparece como um ser amedrontador, mostrando também seu misticismo. Ao tratar dos rituais funerários, em específico, do enterro das mulheres e das crianças e demais membros, era realizado de maneira mais simples: “o que indicava o sexo e a idade do morto era o tamanho do vaso com as oferendas colocado sobre as covas. Já o corpo do feiticeiro era queimado.” Ainda, neste tema, Aguiar destaca que todo o “período de luto era marcado por cantos de lamentações vocalizados ao nascer do sol, ao meio dia e ao pôr-do-sol.” Observa-se que a morte também é festejada, mesmo no luto. Após esse período, seguindo a autora, “a sepultura era aberta, os ossos eram transportados para a aldeia, onde eram pintados, colocados em uma urna e novamente enterrados, desta vez em cova rasa e com festividades, de acordo om as suas crenças.” (AGUIAR, 2000, p. 41).
Ainda se tratando das festividades e sua espiritualidade, segundo a autora: “O início do período das chuvas era comemorado com grande festa, regada a cauim. Nessas ocasiões, os espíritos dos mortos se manifestavam, tornando-se visíveis aos mais velhos e até participavam da festividade.” (p.43). Percebe-se aqui a vida ligada aos ciclos naturais de renovação. Além desses, a autora destaca o principal rito de passagem dos Mongoyós: Eram vários os ritos de passagem entre os Mongoiós. Dentre eles, podemos citar a furação de orelhas, o momento de dar nomes às crianças, a primeira menstruação, a morte etc. O maior deles, no entanto, era a corrida de toras, citada por alguns autores como condição primordial para que o homem pudesse se casar. A corrida era realizada com toras de madeira da barriguda, medindo um metro de comprimento e a mesma medida de circunferência. Para a corrida, os participantes eram divididos em dois grupos. A mãe determinava a participação do filho quando entendiam que a criança já tinha idade apropriada. Os grupos eram diferenciados pela pintura no corpo. Não foi possível identificar os critérios de participação em cada um dos grupos. O toro era colocado nas costas do mais forte e assim era iniciada a corrida. A maior dificuldade consistia no fato de o grupo oponente tentar tomar o toro. Ao fim da corrida, os participantes tomavam banhos de rio, e, à luz da lua, faziam festas nas quais, é claro, não poderia faltar o cauim e muita comida. (AGUIAR, 2000, p. 42).
Ao tratar das crenças, de acordo com Aguiar, “os Mongoiós consideravam como responsáveis pelas doenças as forças da natureza, especialmente, o sol que os atingia através dos seus raios.” Mais uma vez, observa-se a relação com a natureza presente nos saberes indígenas, que ainda hoje refletem nos saberes populares, além das crenças, onde as causas das doenças eram atribuídas aos mortos, “insatisfeitos com os maus tratos durante os funerais.” (p. 42). Sobre as formas de tratamentos utilizados, segundo Aguiar, eram “fumaça de tabaco soprado sobre o doente, longos cânticos semelhantes a ladainhas, infusões, emplastros feitos de ervas. Caso a terapia não desse certo, o doente era culpado pelos males que lhe afligiam, abandonado à própria sorte, pois, segundo a crença dos Mongoiós.” (p. 42-42). Por fim, ao abordar mais uma vez a reencarnação, segundo a crença dos mongoyós, “os espíritos dos mortos podiam reencarnar nas crianças recém-nascidas, desde que este fosse o desejo expressado pela mãe. Quando não ocorria a reencarnação, os espíritos iam para uma grande cabana no céu, farta de comida.” (p.43). Percebe-se aqui que a visão mítica dos mongoyós abarca várias possibilidades de explicação da transcedência espiritual, não cabendo aproximá-la de nenhuma outra forma atual, como mostra Aguiar ao finalizar a apresentação sobre a mitologia dos KamakãMongoyós: Sua mitologia se restringia ao ciclo do sol e da lua. Ambos eram considerados do sexo masculino e, em alguns autores aparecem como irmãos, em outros somente como companheiros. A lua era tida como um ser bobo que vivia se metendo em complicações e em função disso, muitas vezes morria. O sol interferia e a ressuscitava. Quando irado, o sol disparava os seus raios que tomavam a forma de flechas e, quanto mais vermelhos fossem esses raios, maior era a ira do sol. Inclusive incêndios nas florestas, eram explicados por esses estados de fúria. Há uma lenda que narra um episódio em que o sol havia se transformado em capivara e, tendo sido atacado pelos humanos, provocou um grande incêndio como vingança. Os Mongoiós faziam também referência a um dilúvio e ao ataque de jaguar nas noites de eclipse lunar. Acreditavam ainda que, certa feita, um homem havia se casado com uma estrela, tendo depois se separado e voltado à Terra trazido por abutres. Acreditavam, ainda, na existência de uma tribo de anões muito fortes e uma, de comedores de piolho. (AGUIAR, 2000, p.43).
Além dessa visão cosmológica, podem-se destacar ainda as atividades lúdicas como as danças, que segundo Aguiar, eram também atividades frequentes entre os Mongoiós e ocorriam com a formação de uma fila dupla, em que os homens se balançavam sobre os pés e as mulheres os acompanhavam. “Os primeiros colocavam os braços sobre os ombros da dançarina. Cantavam e batiam os pés com força no chão. Os chocalhos, feitos de cabaça e cordas de algodão enfiadas em cascos de veados, queixadas e antas, eram os instrumentos que acompanhavam os cantos.” Percebe-se que a vida social dos mongoyós estava tomada por momentos de alegria, além das vicissitudes, como as doenças e mortes comuns, estes usavam seus saberes e costumes para superar tais fatos, numa vivência coletiva e ecológica que conseguiu perdurar e reexiste naqueles que se autoidenificam, mesmo como povos misturados, mas que re-existem por meio das memórias coletivas e saberes indígenas difundidos ainda hoje, desde o sangue dos ancestrais, aos indígenas que se refugiaram e procuram novas formas de re-existência.
Kamakãs - Mongoiós na Atualidade
Os grupos indígenas Kamakã- Mongoió, a partir do contato com os colonizadores portugueses se caracterizou por expropriações, deslocamentos forçados, transmissão de doenças e assassinatos com a dizimação da ampla maioria do seu povo e com os aldeamentos e outras formas de agrupamento realizadas pelas politicas indigenistas se mesclaram em processos diversos de mestiçagem com não indígenas e também com indígenas especialmente das etnias Baenã, Pataxó , Tupinambá, Kariri-Sapuyá , Gueren formando o etnônimo englobante Pataxó Hãhãhãe e habitam a Reserva Indígena Caramuru-Paraguassu, no sul da Bahia, nos municípios de Itajú do Colônia, Camacã e Pau-Brasil em pequenas porções da terra que lhes foi destinada pelo estado em 1926, terras essas que, invadidas por fazendeiros, foi convertida em diversas fazendas particulares. Em 1980 teve início no seio do movimento indígena a retomada dessas terras, estando em condição sub-judice.
Em Vitória da Conquista os indígenas auto identificados como Kamakã - Mongoió residem de forma dispersa em vários bairros e de forma mais concentrada em Ribeirão dos Paneleiros no povoado da Batalha, palco de antigos conflitos entre colonizadores e indígenas. Essa descoberta recente foi possível a partir da dissertação de mestrado “Índios Paneleiros do Planalto da Conquista”, de Renata Oliveira que colheu diversos depoimentos de moradores daquele local em que resgataram a memória e vivências de parentes que já não estão mais vivos e demonstrando que naquele local e proximidades , os sobreviventes dos conflitos se esconderam e conseguiram formar e manter suas famílias , conquistando uma significativa descendência que ali reside.
Nessa mesma pesquisa Renata Ferreira chega a conclusões importantes sobre o trânsito dos indígenas Kamakã-Mongoió pelos aldeamentos de Cachimbo e Verruga, criados e administrados inicialmente pelos capitães-mores da conquista do Sertão da Ressaca, João Gonçalves da Costa e o seu filho Antônio Dias de Miranda, demonstrando que após a conquista do Sertão da Ressaca os descendentes indígenas tenham permanecido no local e transitavam constantemente por áreas próximas em busca de trabalho, inclusive em fazendas situadas nos antigos aldeamentos.
Referências:
AGUIAR. Edinalva Padre. (org) Revista Memória Conquistense edição nº 5: “Ymboré, Pataxó, Kamakã: A presença indígena no Planalto da Conquista”, (2000) produzida pelo Museu Regional, a partir dos escritos de Edinalva Padre Aguiar, Antonieta Miguel e Ruy Hermann Medeiros.
ISA-INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL -
https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal
NEWIED. Maximiliano Wied “Viagem ao Brasil” do Príncipe Maximiliano Wied Newied (1815-1817)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de (2020), “Índios Paneleiros do Planalto da Conquista: do massacre e o (quase) extermínio aos dias atuais” (2020)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de. Batalha: Memória e Identidade Indígena no Planalto da Conquista. Monografia de finalização de curso, UESB, Vitória da Conquista, 2009.
SPIX. Von MARTIUS. Von “Através da Bahia”: Terceira edição, 1938 Companhia Editora Nacional São Paulo - Rio - Recife - Porto Alegre
SOUSA. Maria Aparecida Silva de. “A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia”, (2001)
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