
A Memória Mongoió em Itapetinga e Itambé
ARTIGO
A investigação sobre o apagamento histórico do povo Mongoió, revelando, pela memória dos mais velhos, uma história de violência e expropriação.
A partir do uso de conceitos oriundos da perspectiva teórica do francês Pierre Bourdieu, como os de campo, representação e capital cultural, além do uso da pesquisa qualitativa, tendo como instrumento metodológico a memória dos moradores mais velhos de Itapetinga, bem como a análise de documentos, cartas e registros antigos, a pesquisadora Jussara Tânia Silva Moreira, em sua tese de doutoramento, publicou o artigo “O Povo Mongoió: da Lembrança ao Esquecimento nas Representações dos Moradores da Cidade de Itapetinga-BA”. Nesse trabalho, a autora fornece importantes indícios da presença dos Kamakã Mongoió como indígenas que habitaram áreas atualmente pertencentes aos municípios de Itapetinga e Itambé.
A autora percebe, a partir de suas investigações, uma dicotomia entre os discursos oficiais e as lembranças dos moradores, influenciadas por elementos culturais, religiosos e pela economia pecuarista — aspectos significativos na formação de Itapetinga como município. Antiga povoação da Pedra Branca — terra Kamakã Mongoió — a localidade passou a se chamar Itatinga e, posteriormente, Itapetinga.
A seguir, apresentamos trechos do trabalho da autora que demonstram algumas de suas conclusões sobre a formação de Itapetinga e a presença dos Kamakã Mongoió:
“Foi a partir da memória do Senhor Jovino Francisco de Souza que buscamos a sinalização da existência do povo Mongoió dentro da área geográfica da cidade. Para tal, foi preciso conhecer aquilo que aqui será conceituado como a ‘pré-história de Itapetinga’. Contudo, como essa pré-história está ligada aos municípios de Vitória da Conquista e Itambé, foi observado que, no senso comum dos moradores da cidade, circula a ideia de que, se houve uma ancestralidade do povo Mongoió na região, não foi exatamente no núcleo que formou a área urbana de Itapetinga. Esse fato nos levou a averiguar os condicionamentos históricos e sociais para a negação da presença do povo Mongoió dentro do território itapetinguense.”
“Essa negação, a priori, já possui uma constatação inicial, revelada no início da coleta de dados sobre a existência indígena no território de Itapetinga. Não há — e não foi encontrada — nenhuma fonte documental nos órgãos públicos locais que trate sobre o tema. Assim, foi por meio da ‘memória dos velhos’ o único caminho para conhecermos as particularidades de uma época que apenas quem a viveu pôde nos apresentar.”
“Foi a chegada daqueles conhecidos, pela memória da população de Itapetinga, como ‘os pioneiros’: Bernardino Francisco de Souza, seu irmão Tercílio Francisco de Souza e o sogro Possidônio Antônio de Carvalho que, com alguns trabalhadores, em 1912, adentraram as matas da região do sudoeste da Bahia, abrindo uma pequena clareira à beira do leito do rio Catulé, marcando o prenúncio do núcleo urbano de Itapetinga.”
Ao citar a obra do memorialista e advogado Campos (2006), a autora transcreve parte de uma correspondência de Bernardino Francisco de Souza, na qual o pioneiro relata:
“Quando cheguei às margens do Rio Catulé Grande, encontrei muitos animais selvagens, muita mata nativa e uma infinidade de caboclos (chamados na época de índios ou nativos) que disputavam a governança das margens do rio. Os ‘índios’, mesmo não demonstrando nenhum tipo de aversão — muitas vezes até nos presenteando com caças e pescas —, não eram fáceis de se lidar. Não era raro o fato de furtarem ferramentas, especialmente facões e machados. Os índios viviam assombrados, para cima e para baixo [Serra Couro D’Anta], com medo do homem branco.”
Antes mesmo dessa época, já em 1817, havia na região uma grande fazenda, registrada no nome de Bernardo Lopes Moitinho, doada pela metrópole portuguesa, por ele ter aberto a estrada que ligava o sertão ao litoral. A propriedade chamava-se Fazenda Onça. Segundo Campos (2006), havia ali um povoado extinto, porém bastante conhecido na época.
“A Fazenda Onça era famosa por suas festas e encontros religiosos de origem católica. Além disso, como recordou a Senhora Terezinha Ribeiro, servia de abrigo para tropeiros, boiadeiros e mascates que cruzavam a região. Isso fazia com que toda a área — inclusive aquela tomada por Bernardino Francisco de Souza e posteriormente vendida a Augusto de Carvalho, fundador do povoado de Itatinga — fosse muito conhecida por quem trafegava pela região. É impossível (supomos) que Bernardino, neto de ‘índio’ ou ‘caboclo’, como era chamado, não soubesse de antemão que aquela área pertencia, por direito, ao povo Mongoió.”
A autora esclarece ainda as estratégias utilizadas pelos fazendeiros para se apossar das terras indígenas. Citando Jabur (1998, p. 44), afirma:
“Alfredo Antônio Dutra, no final de 1935, atraiu os índios deixando-os caçar em suas roças, colher milho, mandioca, cana-de-açúcar. Assim, pegou alguns deles da Serra do Couro D’Anta, levou-os para a roça de sua Fazenda Itaporanga, vestiu-os e os trouxe para a praça, para ter contato com a comunidade [...] Logo depois, foram enviados para Itaju do Colônia, onde havia um posto para os índios se adaptarem à civilização.”
Ou seja, onde “gentilmente” se permitia aos indígenas retirarem alimentos, antes eram suas próprias terras de cultivo. A memória do Senhor Jovino Francisco de Souza confirma:
“Quando era jovem, morava na Rua Boa Nova. Um dia fui à Praça Augusto de Carvalho e me deparei com dois garotos amarrados a um pedaço de madeira que parecia um poste. Vestiam-se de forma estranha e gritavam sem parar. Perguntei do que se tratava, e alguém respondeu: ‘Isto é índio!’ Aquilo me marcou profundamente. Nunca tive coragem de perguntar para minha mãe. Hoje, me pergunto: o que fizeram com os índios daqui? Aqueles garotos não estavam de passagem. Estavam ali para serem vistos. E todos sabiam quem fazia isso: as autoridades, a polícia... Até hoje, me emociono ao lembrar.”
Segundo a autora, a submissão dos Mongoió foi feita por meio de ações conjuntas entre o Estado e os fazendeiros, que promoveram seu deslocamento forçado e a perda de suas terras. Os que resistiam, eram perseguidos, amarrados em praças, catequizados à força ou expulsos para outras regiões. A colonização católica operou como dispositivo de controle simbólico e cultural.
Essa violência também aparece na narrativa do memorialista Wied-Neuwied (1942), que descreve os Mongoió como sedentários, agricultores e com hábitos próprios, mas os considera “primitivos” por não dominarem o português nem se adequarem aos padrões europeus. Apesar disso, destaca que os Mongoió cultivavam, caçavam, tingiam o corpo, produziam arte e defendiam seus territórios. Tinham, portanto, uma estrutura cultural complexa.
A autora também retoma a importância do povoado de Itambé, antes chamado de Verruga, fundado entre 1860 e 1890. Os Mongoió também foram parte dos primeiros habitantes da região, sendo gradualmente deslocados com a intensificação da pecuária e a instalação de missões católicas.
A análise da autora é clara: houve um processo intencional de expulsão e apagamento dos Mongoió. O crescimento econômico da região, com base na pecuária, teve como base o sacrifício ambiental e cultural dos indígenas. A mata foi transformada em pasto, a cultura dos Mongoió foi aniquilada, e a memória de sua existência, silenciada.
“Quando cortamos a primeira árvore desta terra, ela ainda era habitada por índios. Eles estavam por toda parte. Eram como os bichos. Bem selvagens. Às vezes, era preciso ‘bronquear’. Resistir, até que tentaram... Mas a gente deu um jeito neles. Depois, sumiram. Sumiram de vez. E aqui brotou o pasto da comunidade pecuarista.” (B., 2008).
Esse é o retrato de um Brasil que ainda se constrói sobre camadas de silenciamento, apagamento e violência. A autora nos ajuda a lembrar que, antes de Itapetinga, Itambé e Vitória da Conquista, havia uma outra história — indígena, Mongoió, viva e presente.
Referências:
AGUIAR. Edinalva Padre. (org) Revista Memória Conquistense edição nº 5: “Ymboré, Pataxó, Kamakã: A presença indígena no Planalto da Conquista”, (2000) produzida pelo Museu Regional, a partir dos escritos de Edinalva Padre Aguiar, Antonieta Miguel e Ruy Hermann Medeiros.
ISA-INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL -
https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal
NEWIED. Maximiliano Wied “Viagem ao Brasil” do Príncipe Maximiliano Wied Newied (1815-1817)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de (2020), “Índios Paneleiros do Planalto da Conquista: do massacre e o (quase) extermínio aos dias atuais” (2020)
OLIVEIRA. Renata Ferreira de. Batalha: Memória e Identidade Indígena no Planalto da Conquista. Monografia de finalização de curso, UESB, Vitória da Conquista, 2009.
SPIX. Von MARTIUS. Von “Através da Bahia”: Terceira edição, 1938 Companhia Editora Nacional São Paulo - Rio - Recife - Porto Alegre
SOUSA. Maria Aparecida Silva de. “A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia”, (2001)
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